Vacinas de COVID-19: Os riscos de um apartheid sanitário no Brasil
O projeto apoiado pelo presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP-AL), prevê que empresas privadas possam comprar vacinas contra COVID-19 para imunizar seus funcionários e familiares. O projeto (PL948/2021) é de autoria de Hildo Rocha (MDB-MA) e desobriga as empresas a doarem as doses para o SUS (Sistema Único de Saúde), além de permitir a compra de vacinas sem a aprovação da ANVISA (Agência Nacional de Vigilância Sanitária). A PL altera a lei 14.125, de 10 de março de 2021.
Conforme apurado pela jornalista Mônica Bergamo, a proposta teve um recuo, mas, inicialmente, propunha que as empresas pudessem abater o valor gasto com as vacinas do imposto de renda. Com isso, os valores gastos seriam devolvidos às empresas via isenção fiscal e custeado por toda a sociedade. Mesmo sem a isenção fiscal, essa medida não tem precedentes nem em países em que o sistema de saúde é totalmente privado. E a razão é simples, em todos os países segue-se o entendimento já consolidado pela ciência de que o processo de imunização é um pacto coletivo e não uma saída individual.
O que já aprendemos depois de dois séculos da descoberta da vacina da varíola é que a imunização precisa atingir o maior número possível de pessoas. É por essa razão que estão em andamento os testes das vacinas em crianças e adoslescentes, o que só torna mais incerta a aquisição de vacinas para o Brasil. Não há garantias de que sejam mantidas as promessas de venda de doses, caso outros países decidam imunizar suas crianças, o que parece bem razoável de se supor que ocorra. Acreditar que haverá, num fututo próximo, um cenário de abundância de vacinas é crer na capacidade logística do governo brasileiro, o mesmo que não aceitou a proposta antecipada de aquisisão de doses no ano passado por não acreditar em vacinas.
A questão vai além da dicotomia serviços públicos x serviços privados. O que está em jogo não é apenas a defesa de um sistema público e gratuito de imunização. Seria igualmente absurdo se São Paulo resolvesse vacinar apenas a população de seu estado com as doses produzidas pelo Instituto Butantã, ao invés de enviar vacinas para Manaus em caráter emergencial e para todo o país. Para além da defesa do SUS, esse projeto de lei fere princípios constitucionais, humanitários e científicos. Essa proposição não se guia pela ciência, é sintomático que ela receba o repúdio de cientistas e o apoio de empresários. O fenômeno do negacionismo é menos sobre um lunático com papel alumínio na cabeça e mais sobre decisões serem pautadas pela chamada lógica de mercado, ao invés de serem baseadas na ciência. Foi essa lógica que nos trouxe até aqui com a marca de quase 4 mil mortes diárias pela COVID-19.
Atualmente, o sistema de imunização no Brasil se guia por um critério de acesso universal em que todas as pessoas têm direito às vacinas, respeitando-se a ordem dos grupos prioritários. O país possui ainda um dos melhores programas de imunização do mundo com experiência e infraestrutura para vacinar a população, a exemplo das campanhas anuais contra influenza. Já a proposta da PL948/2021 de vacinas adquiridas pela iniciativa privada, se baseia em critérios que são excludentes, tais como ocupação, renda, vínculo empregatício e região do país. Se considerarmos as disparidades existentes no mundo do trabalho, critérios como raça, identidade de gênero e orientação sexual se somam aos anteriores. Um dos maiores riscos da PL948/2021 é a criação de um apartheid sanitário com critérios de vacinação determinados pela iniciativa privada e pelas chamadas leis de mercado, o que representaria ao menos dois séculos de retrocesso em saúde pública.
Utilizo aqui a noção de apartheid sanitário menos como uma categoria histórica e mais como uma categoria política para se analisar o Brasil na pandemia. Essa operação encontra inspiração no filósofo Etienne Balibar que, desde a década de 2000, tem designado como apartheid global o processo de aprovação de leis anti-imigração na Europa. O termo é uma referência ao regime de segregação racial adotado pela África do Sul, entre 1948 e 1994, que segregava por critérios raciais o acesso aos serviços de saúde e educação, bem como espaços de circulação e moradia. Com a pandemia de COVID-19, o termo apartheid sanitário tem sido utilizado para tratar de medidas de segregação impostas em fronteiras de países e territórios, tais como a recusa em vacinar parte de uma população ou determinado grupo étnico-racial.
Neste sentido, é importante mencionar que o acesso global às vacinas escancara desigualdades. Países da União Europeia e Estados Unidos deverão imunizar toda sua população adulta ainda no ano de 2021, enquanto a maior parte das nações africanas só iniciarão o processo de imunização depois de 2023, como mostra o recente estudo da revista The Economist.
No caso brasileiro, mesmo com um programa de imunização público, gratuito e de acesso universal, a vacinação contra COVID-19 também revela elementos da desigualdade racial no país. Conforme levantamento da Agência Pública, até o momento, o Brasil vacinou o dobro de pessoas brancas em relação às pessoas negras. Isso ocorre não apenas porque a expectativa de vida dos negros é menor do que a dos brancos, pela própria reprodução do racismo. Os brancos são a maioria em algumas profissões dos grupos prioritários, como o caso dos médicos. No Brasil, de cada 10 médicos vacinados, apenas 2 são negros. Estes dados se somam ainda ao estudo que mostram que bairros periféricos de São Paulo têm 3 vezes mais mortes por COVID-19 do que os bairros centrais, revelando que as mortes na pandemia têm cor e CEP bem definidos.
Considerando o cenário de escassez de vacinas no Brasil e no mundo, a PL948/2021 servirá para interesses particulares e para legitimar ainda mais o negacionismo do governo federal e sua recusa em vacinar a maior parte da população brasileira. A vacinação privada de Covid-19, tal como propõe a PL948/2021, irá agravar ainda mais as já exisitentes desigualdades que a pandemia tornou evidente. Hoje, as vacinas fazem parte da agenda prioritária de toda sociedade, incluindo pequenos e grandes empresários, servidores públicos, políticos, formadores de opinião. Se aqueles que puderem pagar pelas vacinas ou têm acesso forem imunizados primeiro, a pressão política pelas vacinas diminuirá fazendo com que aqueles que não podem pagar ou não têm acesso tenham que contar com um futuro incerto. As vacinas não podem se tornar um dispositivo que amplia ainda mais a desigualdade, ameaça o SUS e não promove a imunização de forma eficiente e coletiva. Isto representa um risco que é ao mesmo tempo sanitário, político e social.
Isabela Kalil é doutora em Antropologia e docente da Escola de Sociologia e Política de São Paulo. Seus temas de pesquisa incluem desigualdade urbana, desinformação, negacionismos e extrema direita. https://twitter.com/kalil_isabela